No antigo escritório da TV Globo em Nova York, na Terceira Avenida, o "estúdio" - nada mais do que uma modesta tapadeira pintada, até ser demolido em uma providencial reforma posterior - ficava dentro da redação. Mesmo, tapadeira, luzes, câmera e fios viviam em incômoda proximidade à monitores de tevê, telefones e máquinas de fax, computadores, salas de edição de imagem, a sala do diretor, a cabine para gravação de locução, uma porta lateral (oficialmente vedada a entradas e saídas) e, evidentemente, as mesas dos repórteres e produtores.
Como acontece em redações do Oiapoque ao Yang-Tsé, ali todos conversavam, digitavam, discutiam, discavam e falavam ao telefone, se chamavam, respondiam, comentavam, criticavam, riam, lamentavam, abriam e fechavam portas e gavetas ininterruptamente, do momento que chegávamos ao momento que saíamos.
Enquanto tudo isso acontecia, Paulo Francis tinha que gravar - direto, sem interrupções - os comentários que fazia diàriamente para o Brasil. Francis, ao contrário da maioria dos comentaristas de televisão, jamais tinha um texto preparado com antecedência, nunca leu um teleprompter (aquela máquina que passa o texto em frente à pessoa enquanto a mesma câmera vai registrando a imagem). Talvez até porque fosse profundamente míope. Os óculos que usava na vida real tinham lentes grossas, daquelas que nos bancos escolares do século passado a gente costumava chamar de "fundo de garrafa". Em cena, quase todo mundo sabe, os óculos que colocava no rosto eram vasados, não tinham lentes. Óculos cenográficos, como cabia a quem tinha tanta paixão por teatro. Francis, simplesmente, subia ao estúdio - faltou contar: ficava uns cinquenta, sessenta centímetros mais alto do que o resto da sala, como um pequeno palco - olhava para a câmera e falava. O tempo que fosse necessário.
Dois, três, cinco, dez minutos - dependendo do entusiasmo com que elogiasse - ou esculhambasse - a situação, o evento, o filme, a peça, o político, o ator, a modelo, a soprano, o maestro, a orquestra, a exposição ou que quer que lhe despertasse interesse. Francis tinha opinião sobre tudo. Sempre radical. E nunca tão cimentada que não merecesse ser revista. Improvisar? Para ele era tão natural quanto piscar.
Mas falar, dentro daquela redação, enquanto as câmeras rodavam, exigia o (quase) impossível: não apenas que todos se calassem, como também que os telefones e faxes não tocassem, que portas não batessem, que campainhas não soassem etc etc.
Até acontecia.
Mas não na primeira, na segunda, terceira ou quarta vez. E a cada repetição Francis ficava: a) mais brilhante; b) mais contundente; c) mais colérico com as interrupções. O resultado era uma torrente de palavrões, ditos com intensidade susficiente para abalar o centro de Manhattan.
Cá entre nós, era um espetáculo à parte. Que terminava - quando finalmente o milagre da gravação sem interrupções se fazia - com um baita sorriso dele, como se nada demais tivesse acontecido. Francis, então, descia do estúdio (palco?), pegava suas coisas, punha seus livros embaixo do braço e saía para o mundo. Quase sempre assoviando ou cantarolando algum trecho de música erudita. E, sempre, pela porta Proibida.
Edney Silvestre